sábado, novembro 04, 2006

DocLisboa 2006 Report

Cinema Documental Japonês Contemporâneo

Participar em festivais de cinema tem algo de especial, é como se se entrasse num mundo à parte. Até muito recentemente as minhas experiências em festivais foram sempre fora de portas o que aumenta a dose de adrenalina. Ir a um festival na cidade onde se mora, quase a dois passos de casa, dá a sensação de que se vive duas vidas, como os super-heróis: uma da rotina diária do emprego chato e outra onde se vive bebe e respira cinema com algumas doses de festa à mistura.

No Doc Lisboa ter a oportunidade de ver uma quantidade considerável de filmes japoneses e ainda por cima documentários é um privilégio difícil de alcançar, pena as cadeiras das salas de Culturgest serem tão desconfortáveis.

Os japoneses

Os filmes de Makoto Sato são herdeiros directos da cinematografia de Shinsuke Ogawa (do qual pudemos assistir a “Magino Mura” – “Magino Village”) originário de uma geração com uma forte consciência política e uma vontade de mudar o mundo através dos seus filmes. Apesar de haver fortes semelhanças no método de filmar, Makoto Satou foca essencialmente as pessoas, os seus sujeitos, e não os seus problemas sociais ou políticos. Os dois filmes do realizador mostrados no Doc Lisboa falam-nos da vida de um grupo de deliciosos velhinhos de uma pequena aldeia nas margens do rio Agano, que sofreram as sequelas da contaminação do rio com mercúrio pela indústria. Só de quando em vez somos lembrados de que os velhotes sofrem da doença de minamata, principalmente quando se queixam da impossibilidade de exercer certas funções ligadas ao tacto e à motricidade. Assistindo ao filme somos cativados pela riqueza das personalidades e dos diálogos entre eles, muitas vezes discussões entre casais de um cariz quase infantil.

Houve uma masterclass com o realizador a que, lamentávelmente, não me foi possível assistir, mas foi possível perceber, através das apresentações dos filmes e de um pequeno debate, que o Sr. Satou tem consciência do seu lugar na história do documentário japonês, estando situado entre duas gerações com modos de filmar e encarar os seus sujeitos diâmetralmente diferentes. Satou leva o seu tempo (e paciência) para fazer os seus filmes, instalando-se perto dos seus sujeitos, convivendo com eles, por períodos longos de tempo. Os projectos são pensados de antemão sobre uma estrutura básica que vai maturando ao logo do tempo passado na comunidade em questão. Enquanto que “Vivendo no rio Agano” nos mostra um lado mais documental sobre as personagens, “Memórias do rio Agano” tem um resultado mais poético e experimental, não usando as metodologias clássicas do documentário, sobrepondo as vozes dos velhotes, entretanto falecidos, às lindíssimas paisagens que já conhecíamos do filme anterior, agora vazias dos seus habitantes.

Naomi Kawase filma-se a si própria. Ao fazê-lo sente-se nos seus filmes uma necessidade visceral de chocar de tal forma forte que parece falsa. De todos os filmes dela a que assisti saí com essa sensação, de que, ao contrário do óbvio, tudo é encenado para chamar a atenção do espectador. Kawase não tem grandes preocupações técnicas, filma em vídeo e super 8 como se de um registo se tratasse e sujeita-se a situações sejam elas constrangedoras para ela ou para os seus interlocutores ou onde a própria tem uma postura agressiva, cruel e egoísta. Ouvir Naomi Kawase falar dos seus filmes reforça mais ainda esta sensação, além de se contradizer, não fala concretamente sobre nada (nem das condições técnicas), responde às questões que lhe são colocadas com evasivas ou respostas vagas.

Ela pertence à novíssima geração de cineastas japoneses que filmam o que lhes apetece de forma algo artesanal mas também com um olhar provocador e chocante, sem grandes preocupações orçamentais. Pessoalmente não gosto dos filmes dela mas agradam-me outros filmes de cineastas da mesma geração como Kazuo Hara, de quem passou “The Emperor’s Naked Army Marches On” no Doc Lisboa, ou Yutaka Tsuchiya de “The New God” ou “Peep TV Show”.

Se por um lado acho interessante a lata dos jovens realizadores de cinema japoneses em pegar numa câmera caseira de vídeo, fazerem um filme e, de alguma forma, conseguirem que sejam distribuídos, nem que seja por festivais, fora do seu país e ganharem prémios, fica-me sempre a incerteza de se o reconhecimento que lhes é dado no Ocidente, nomeadamente na Europa, não será apenas um pretenciosismo de premiar algo de radicalmente diferente e exótico.

Ainda tive a oportunidade de ver “The Cheese and the Worms”, de Kato Haruyo, que usa um modo de filmar algo semelhante a Naomi Kawase sem a crueldade e o egocentrismo. O filme tem como sujeito a mãe da realizadora que encara a sua luta contra uma doença cancerígena como uma nova fase da sua vida sem grandes alaridos. Ficamos impressionados com a serenidade e a simpatia da senhora, sem ficarmos impressionados com a doença em si.

O Doc Lisboa

Curiosamente houve uma certa tendência para filmar os próprios pais ou o tema principal estar ligado a doenças e afins. Felizmente que todos os filmes dentro deste tema que me foi possível ver eram excelentes e muito sóbrios, com principal destaque para “Logo Existo” de Graça Castanheira, realizadora portuguesa.

Dentro de tudo o que me foi possível ver, e ver os filmes do Doc Lisboa a 100% é impossível dado que há sempre duas sessões simultâneas e não há projecções repetidas, o filme que venceu foi “Our Daily Bread”, um retrato altamente despojado da indústria alimentar, seja ela carnes ou vegetais, sem locução ou música, apenas som directo, e o piorzinho foi “Lusofonias” que é um filme engraçado mas que não considero um documentário, mas sim uma reportagem televisiva sobre música lusa (portuguesa, africana, brasileira e as consequentes misturas).

O saldo do Doc Lisboa é mais que positivo, é uma oportunidade única e todos os filmes são de excelente qualidade e muito válidos.